Sá Carneiro foi fundador do PPD/PSD e morreu tragicamente no desastre de Camarate. Só conhecia um tempo: o agora. O depois era tarde de mais e a urgência nas coisas perseguiu-o até à morte prematura.
Sá Carneiro morreu há 30 anos no desastre de Camarate e deixou para trás um projecto de vida. "Se tiver de continuar a viver nesta terra, conseguirei concretizar todos os meus sonhos", escreveu um dia. Viu poucos. Viu nascer os cinco filhos que teve com Isabel Sá Carneiro e mais tarde conheceu novo amor ao lado de Snu Abecassis. Fundou um partido, do qual se fartou, e morreu enquanto primeiro-ministro.
A teimosia herdou-a de família e terá sido por isso que insistiu na ideia de que ia morrer jovem: "Sei que o meu destino é morrer cedo e só concebo a vida se for vivida vertiginosamente", disse.
Quando nasceu, com 4,5 kg, em 1934, não se adivinhavam os problemas de saúde que teve ao longo da vida. No início da década de 70 esteve perto da morte depois de um acidente de carro com o irmão Ricardo - o mais próximo. Como católico chegou a receber a extrema-unção e pediu que rezassem por ele. Não foi preciso, mas quando acordou confidenciou à mulher que "já não era o mesmo". E não foi.
A ditadura tinha os dias contados e ele começou a elaborar os estatutos de um partido-social democrata que apresentou ao público a 6 de Maio de 1974, ao mesmo tempo que foi chamado a integrar o I Governo Provisório, de Palma Carlos. Mais tarde, a impaciência e a vontade de fazer diferente levaram-no a formar o governo da Aliança Democrática.
O incompreendido Foi a relação com D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto - o "bispo das oposições" -, que o despertou para a política. A injustiça de Salazar, que obrigara o bispo a exilar-se, "era sinal de que não era possível ignorar a política e de que o regime se tornara insustentável". As mudanças na Igreja, a braços com o Concílio Vaticano II, fizeram despontar em Sá Carneiro a necessidade de fazer algo. As intervenções públicas começaram a surgir em grupos católicos onde se discutiam alterações na Igreja Católica e, como advogado respeitado e de famílias importantes, ganhou protagonismo.
O bicho da política já o tinha atacado antes e, ainda na faculdade, uma injustiça com Vasco Vieira de Almeida (que viria a ser ministro no governo de Palma Carlos) obrigou-o a uma intervenção mais política. Vieira de Almeida foi acusado pela extrema-direita de ser subversivo, o que lhe deu direito a ficha na PIDE. O ambiente hostil na faculdade só abrandou com o apoio público de Sá Carneiro: "Não estou de acordo com as tuas posições, mas acho miserável o que foi feito. Podemos ter divergências, mas não podemos ter nada a ver com denúncias policiais. É uma cobardia." E publicou um documento onde defendia o colega de faculdade. Foi talvez a primeira de muitas cartas que assinou sozinho a "revoltar-se" contra as injustiças do regime. Diversas vezes, escreveu a Salazar, que tinha sido professor do seu pai, José Gualberto, em Coimbra.
Uma das vezes que lhe dirigiu a palavra foi para pedir que anulasse a deportação de Mário Soares para São Tomé e Príncipe, em 1968. Raras vezes assinou abaixo-assinados. Preferia actuar sozinho. Assumia publicamente as suas posições e evitava as misturas com a oposição, com a qual não se identificava.
O Estado Novo não era a solução, mas o comunismo era uma via que Sá Carneiro não compreendia, apesar de reconhecer nos escritos de Marx alguma verdade. Os "desprotegidos" e os dramas sociais uniam--nos nas vontades, mas por essa altura só tinha uma certeza: "O indivíduo está integrado no total, mas possui dentro de si próprio a liberdade que o define como animal racional. Se abdica dessa qualidade, aliena todo o seu pensamento ao serviço de qualquer causa que julgue merecer o seu respeito." Nunca se quis alienar. Aliás, foi essa necessidade de pensar e fazer diferente que criou nele a ideia de que não era compreendido: "Desisti de procurar quem me compreenda; sei que é totalmente impossível", confessou um dia.
Moral e bons costumes Sá Carneiro vivia a religião de uma maneira muito peculiar: ele e a mulher eram católicos activos e houve uma altura em que a extrema religiosidade dele abriu chagas na relação do casal.
A intervenção pública começou com os encontros de casais, enquanto geria o escritório de advogados no Porto, para depois criar, com amigos, a Cooperativa Confronto. Nessa altura já Sá Carneiro tinha contacto com teólogos e filósofos estrangeiros que clarificaram a ideia do atraso português. Olhou para os sistemas políticos dos países nórdicos e viu na social-democracia o caminho a seguir. Na altura a PIDE já estava atenta.
Vindo de uma família com título nobiliárquico, Francisco Sá Carneiro esteve quase quatro anos sem nome, devido a uma lei que o impedia de acumular quatro apelidos, como os irmãos. A decisão do tribunal que aceitou o apelido Lumbrales, o título da mãe, Maria Francisca, chegou tarde.
Foi educado na casa da Picaria, no Porto, entre a rigidez da mãe e a teimosia do pai, que deu espaço a várias desavenças - que foram aumentando com o tempo. Maria Francisca chegou a dizer que o filho era "um comunista".
Nos limites da subversão Apesar de não suportar o regime de Salazar, a PIDE tinha-o como "um indivíduo que goza de integridade moral. Faz as suas observações ao que entende estar mal feito sem se subjugar a qualquer ideal que não o dele." As intervenções públicas tocavam muitas vezes os limites da subversão, e isso não tranquilizava a PIDE, que foi sempre actualizando a sua ficha, mesmo enquanto deputado pela União Nacional.
A verdade é que quem o ouvia falar podia confundir a sua revolta com simpatia comunista: "A terra foi dada a todos e não só aos ricos", disse numa conferência da Confronto, a primeira em que entrou. Depois afastou--se: "Não gostava de se submeter às exigências das tomadas de decisão colectivas. Abominava as discussões intermináveis - especialmente se acabasse em minoria. E odiava ser forçado a pensar por outra cabeça que não a dele. Preferia actuar sozinho."
A entrada a sério no mundo da política aconteceu pouco depois. Com Marcello Caetano no poder havia a promessa de algumas mudanças.
Sá Carneiro foi convidado a integrar as listas da União Nacional (UN) por Mário Pinto, que queria rejuvenescer o partido e integrar alguns independentes. "Sou um tímido, não tenho jeito para a política", desabafou uma vez com o amigo José Pedro Pinto Leite.
Os tempos na Assembleia Nacional roubaram-lhe a paciência, mas deram-lhe a bagagem política. Acumulou derrotas atrás de derrotas, mas tornou-se num dos inconvenientes para Marcello Caetano - seu professor na faculdade.
Na ala liberal, que contava com nomes como Pinto Balsemão e Pinto Leite, Sá Carneiro deu nas vistas pelos discursos. "Inconveniência" veio mesmo a ser a palavra que mais se adaptou aos seus projectos.
Ainda em campanha, foi inconveniente ao assinar uma carta pública com os pressupostos em que aceitava candidatar-se; foi inconveniente ao denunciar que era ilegal interrogar presos sem a presença de advogado; foi inconveniente ao apresentar uma lei de imprensa que pretendia acabar com a censura, ao defender o divórcio civil para toda a gente e ao questionar os métodos de interrogatório da PIDE. E foi "muito inconveniente" ao visitar prisões e ao apresentar o projecto de revisão constitucional em conjunto com Mota Amaral. As derrotas consecutivas levaram-no a abandonar o lugar no plenário durante sessões a fio e a renunciar ao mandato em 1973.
A "inconveniência" ficou registada em todas as justificações de chumbo dos seus projectos e ainda nas palavras de Marcello Caetano: Sá Carneiro "punha uma dose emotiva nos seus raciocínios", "tentava impor aos outros a força da sua vontade", "queria ter razão em tudo" e por fim "tinha uma ânsia febril por andar depressa". E tinha razão.
Essa incompreensão não o largou durante toda a vida e foi a base de muitas inimizades dentro e fora do partido que fundou. O nascimento do PSD não foi fácil e coincidiu com o I Governo Provisório, em que foi vice-primeiro-ministro.
Quando saiu do governo de 55 dias encontrou o partido já dividido. Saiu e voltou ao PPD/PSD depois de meses de retiro. A doença foi a desculpa, mas a verdade é que a experiência governamental o deixou esgotado e descrente. Voltou em Janeiro de 1975. Chegou a discursar para os críticos durante cerca de oito horas - bebeu cinco litros de água. O conselho nacional rendeu-se à sua oratória e votou pelo seu regresso.
Fonte: Jornal i
por Liliana Valente,
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